Mentiras da Memória Sincera
Mentiras da memória sincera
Traduzido por Daniela Ferreira para o blog The Untold Sode of The Story
Só
nos Estados Unidos, são 3000 casos nos tribunais baseados no depoimento de
gente que garante ter recuperado lembranças traumáticas. São acusações de
estupros e abusos sexuais. Bom para a Justiça? Nem tanto. Muitas dessas
recordações podem ser memórias imaginárias. E o acusador nem sabe que está
mentindo.
Por
Carlos Eduardo Lins da Silva, em Washington, e Lúcia Helena de Oliveira.
Nos
Estados Unidos, há em pendência na Justiça pelo menos 3000 processos ativados
pela suposta recordação de lembranças reprimidas na infância. Claro que a
recordação dos traumas é útil para o esclarecimento de uma série de crimes. Mas
pode ser uma armadilha. À ciência cabe o papel importante de definir, nesses
casos, o que é uma lembrança reprimida verdadeira, que acabou sendo recuperada,
e o que é memória falsa implantada. Sim, porque às vezes um cidadão pode se
lembrar com detalhes de um fato que nunca aconteceu. Aí o sujeito vai lá, diz a
verdade (ele está sendo absolutamente fiel à sua memória), mas sem saber está
contando uma mentira (a memória dele é que não é nem um pouco fiel à
realidade).
Nunca
se falou tanto de falsas memórias como agora nos Estados Unidos. Em maio do ano
passado, na Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, dezenas de
neurologistas, psiquiatras e biólogos se reuniram para discutir o problema de
quem tem recordações mentirosas. As conclusões estão longe de ser definitivas.
O conhecimento científico atual ainda não consegue determinar quando uma
lembrança é falsa ou verdadeira. É necessário mais empenho para desvendar como
o processo da memória funciona.
É
bem verdade que já se sabe alguma coisa sobre os mecanismos de memorização.
Sabe-se, assim, que, ao se guardar alguma coisa na memória, as células do
cérebro mudam de comportamento. Podem enfraquecer, ou reforçar, os contatos que
mantinham com outras células chamados sinapses.
Além
disso, em cada um dos dois tipos, a memória se subdivide em duas formas: a
implícita e a explícita. A implícita lida com o conhecimento inconsciente, com
as habilidades motoras e de percepção. Por exemplo: um adulto só sai andando
pelo mundo porque um dia, quando ainda era um bebê, aprendeu a caminhar e
guardou esse conhecimento na memória implícita ele não tem consciência de que
está se recordando desse aprendizado a cada um de seus passos. A memória
implícita ou inconsciente é trabalhada em diversas áreas cerebrais, em especial
numa delas, conhecida como amídala.
Já
a memória explícita é processada numa região chamada hipocampo e depois vai
para o córtex, a superfície cerebral que funciona como sede da consciência.
Esse outro tipo de memória tem a ver com o conhecimento consciente de
informações, pessoas, lugares o que você aprende na escola é guardado como
memória explícita.
Na
prática, porém, as coisas não são tão fáceis de ser rotuladas, pois as diversas
partes do cérebro comunicam entre si. A amídala e o hipocampo podem mandar
mensagens um para o outro. Um exemplo: alguém se fere num acidente de carro em
que a buzina dispara. Mais tarde, esse indivíduo pode vir a ter uma reação
emocional sempre que ouvir aquele som. A lembrança do acidente é clara, porque
foi guardada na memória explícita (no hipocampo). Mas, quem sabe, não exista a
consciência de que a buzina estava tocando quando tudo aconteceu e que esse é o
motivo do medo ou do susto, toda vez que escuta o seu barulho. Porque esse
detalhe da buzina disparada ficou na memória implícita (na amídala). A memória
sempre registra cada detalhe de uma cena qualquer, explica a psicóloga paulista
Elisabete D. R. Pimentel. Mas só temos lembranças conscientes de parte deles. E
o risco surge quando uma memória falsa é confundida com algo que foi recuperado
do inconsciente.
Uma
das razões pelas quais certas pessoas não se lembram de experiências
traumáticas da infância é que a região cerebral do hipocampo, ligada à
consciência, leva tempo para amadurecer e formar memórias acessíveis. A amídala
amadurece mais cedo e armazena memórias implícitas (inconscientes) desses
eventos.
Os
elementos registrados nessa memória inconsciente, traumáticos ou não, irão se
expressar nas funções psíquicas e comportamentais do indivíduo, diz a psicóloga
Elisabete Pimentel. Para a Psicanálise, algumas lembranças, em especial as
dolorosas, podem ser mantidas no inconsciente por representarem uma ameaça. É
um mecanismo de autopreservação, explica Elisabete. Pois, se não há um preparo
para se ter consciência das informações reprimidas, a vivência delas é como um
pesadelo insuportável.
O
médico vienense Sigmund Freud (1856-1936) foi o primeiro a se interessar pela
paisagem nublada das memórias reprimidas, como dizia. Também foi pioneiro em
descrever que o inconsciente pode embaralhar lembranças reprimidas e lembranças
falsas, as fantasias, como mostra o filme de John Huston, Freud Além da Alma.
Freud
concordava que no momento em que a pessoa está pronta, essas memórias podem vir
à tona, até de maneira espontânea. Foi o que aconteceu com o americano Frank
Fitzpatrick, um corretor de seguros de 38 anos, que recordou ter sido molestado
sexualmente pelo padre James Porter, trinta anos antes. A lembrança veio numa
noite mal dormida, em que o som da respiração do próprio Fitzpatrick o fez reviver
o arquejante sacerdote. O episódio do passado acabou sendo comprovado por
depoimentos.
Em
outro caso, a americana Eillen Franklin se lembrou que seu pai estuprou e
assassinou uma amiga dela, vinte anos antes. A recordação veio quando sua
sobrinha gesticulou como sua colega, ao tentar se defender dos golpes.
Evidências materiais provaram que a lembrança era verdadeira e, em 1990, George
Franklin, pai de Eillen, se tornou a primeira pessoa nos Estados Unidos
condenada por uma acusação baseada em memória recuperada. O problema todo é
que, às vezes, uma provável memória recuperada não passa de uma fantasia.
O
que acontece no cérebro quando as lembranças são reprimidas? Segundo um
trabalho da neurologista Michela Gallagher, da Universidade da Carolina do Norte,
em situações de pavor, o organismo despeja substâncias similares ao ópio na
amídala cerebral. Chamadas opiáceos endógenos, elas enfraqueceriam o processo
de memorização, aparentemente para reduzir o medo e a dor. A lembrança fica,
então, atenuada na amídala e, com isso, diminui também a sua transmissão para o
hipocampo, ou seja, para a consciência.
Mas
o acontecimento aterrorizante, que não chega a se transformar em memória
explícita, pode permanecer como memória implícita associada a alguma sensação física
ou a gestos que, mais tarde, quando experimentas de novo, desencadeiam a
recuperação das lembranças (veja ilustração acima). Eis porque memórias
reprimidas podem se tornar nítidas de uma hora para outra.
Às
vezes, porém, a situação recordada com nitidez impressionante não passa de uma
memória implantada fenômeno para o qual os cientistas começam a encontrar
explicações. Em maio do ano passado, Gary Ramona obteve a primeira condenação
de psicólogos, nos Estados Unidos, acusados de implantar memórias. Os
terapeutas tiveram de pagar 500 000 dólares a Ramona, por terem induzido sua
filha, Holly, a lembrar de supostos abusos sexuais praticados por ele, seu pai,
quando ela era criança. Ramona provou que os incidentes alegados nunca
ocorreram.
Segundo
o pesquisador Stephen Kosslyn, da Universidade Harvard, a mesma área cerebral
que percebe uma imagem captada pelo olho e a armazena na forma de memória
também se encarrega daquilo que imaginamos como o rosto de uma pessoa que ainda
não conhecemos, mas que foi descrito por alguém. Trata-se da chamada região
temporal mediana. Talvez, especula Kosslyn, o fato de visões reais e visões
imaginárias serem guardadas no mesmo canto cerebral possa provocar confusões.
Então, se perderia a noção daquilo que verdadeiramente foi visto e o que foi
imaginado (veja ilustração acima). Alguns estudos recentes mostram que é
possível implantar memórias com assustadora facilidade. Especialmente em
crianças. Experiências com meninos em idade pré-escolar mostram que eles tendem
a relatar como fatos verdadeiros histórias que lhe foram sugeridas por seus
entrevistadores. A repetição de perguntas sobre eventos irreais leva as
crianças a acreditarem que tudo é real.
Elizabeth
Loftus, da Universidade de Washington, implantou memórias em adultos normais,
entre 18 e 63 anos de idade. Quando a mentira era sugerida por pais e amigos
próximos desses voluntários, o enxerto de memórias foi mais rápido. É ainda
mais fácil implantar memórias quando a pessoa está sob o efeito de hipnose ou
de drogas como o sódio amital e o sódio pentotal, conhecidos por soros da
verdade. Embora essas substâncias sejam desaconselhadas pela Associação Médica
Americana, muitos psicólogos ainda as empregam nas sessões de análises.
O
perigo é óbvio. As vidas de pessoas respeitáveis podem ser destruídas. O
cardeal de Chicago, Joseph Bernadin, passou três meses sob suspeição no início
do ano passado. Um homem de 34 anos disse ter sido violentado por Bernadin, 17
anos antes. Depois, o mesmo homem retirou a acusação, afirmando que tinha se
enganado. Achar que os processos baseados em memória sempre envolvam esse tipo
de engano é um erro. Corre-se o risco de não levar em conta as memórias
reprimidas, permitindo que crimes fiquem impunes. O próprio cardeal Bernadin
alertou para essa possibilidade, depois de ter se livrado do problema.
Fonte: http://super.abril.com.br/superarquivo/1995/conteudo_114495.shtml. acesso em 02 de julho de 2011.
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