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Casos de Falsas Acusações de Abuso Sexual, parte V " Wenatchee"


Wenatchee

 

 

 

A cidadezinha de Wenatchee, no Estado de Washington, tinha, em 1992, cerca de 58.000 habitantes, que gozavam de uma existência calma e sem grandes problemas. Até que rebentou um escândalo de abuso sexual de crianças, que a transformou numa espécie de capital americana da pedofilia.

Tudo começou quando uma menina de 9 anos, chamada Ann, a filha mais nova de um casal pobre e mentalmente deficiente (Harold e Idella Everett), começou a dizer que tinha sido abusada por dois miúdos na escola. O Serviço de Proteção das Crianças tomou conta do assunto, e começou por verificar que não havia sinais físicos de abuso. Em vez de arquivar o caso, dirigiu as suspeitas sobre os pais da criança, que poderiam ter abusado dela em casa. Ann negou que tal tivesse acontecido, e foi entregue aos pais, com a condição de ser levada a sessões de terapia do Serviço, acompanhada das duas irmãs e de dois irmãos gêmeos.

 

Depois de um ano de terapia, as crianças estavam já prontas a "revelar" que tinham sido maltratadas pelos pais. As duas filhas mais velhas, Melinda, de 10 anos, e Donna, de 18, foram entregues aos cuidados do detetive Robert Perez, da polícia local, em cuja casa passaram a viver. E quem era ele?

Robert Perez não foi um adolescente modelar; tinha até cadastro por roubo. Aos 18 anos, em 1971, afastou-se da casa paterna, sendo recebido por um jovem casal de Wenatchee, Lenny e Rebecca Williams, que o tratou como a um filho - até que Lenny Williams o expulsou de casa ao descobrir que ele tinha relações ilícitas com a mulher. Cinco anos mais tarde, quando o casal Williams se divorciou, Perez reapareceu e casou com Rebecca algumas semanas depois. Aproveitou para convencer os meninos Williams a acompanhá-lo numa viagem ao Texas, onde os adotou, impedindo assim que o pai os recebesse e dando provas de um caráter menos que recomendável.

Apesar disso, fez-se policial, em 1983, mas a sua carreira não foi das melhores. Um supervisor repreendeu-o pela tendência que mostrava para controlar e manipular outras pessoas. Em 1989 foi assinalado como problemático: "Gosta de confrontação e gosta de ter poder sobre as pessoas [...] Tem a ideia de que as pessoas fazem sempre o que ele manda" [21]. Foi este policial que, tendo feito um curso apropriado, chamou a si a investigação de supostos abusos sexuais de crianças. E a sua carreira passou de medíocre a excepcional em pouco tempo.

Logo que o detetive Perez conquistou a confiança das meninas, levou-as a passear no carro pelas ruas da cidade, para que elas apontassem os lugares onde teriam sido abusadas e as pessoas que abusaram delas. Depois de alguma persuasão, as meninas cederam. Por coincidência, muitas das pessoas que apontaram frequentavam a Casa de Oração Pentecostal de Wenatchee Leste.

O ambicioso detetive Perez sabia o valor da publicidade. Apoiou-se na campanha antipedofílica para se autopromover como justiceiro das criancinhas, chegando a organizar um grupo de apoiadores a que chamou Brigada dos Laços de Púrpura, por usarem laços dessa cor nos casacos. Além disso, obteve o apoio de alguns políticos e da indústria de proteção de menores e, com base em alegações fantasiosas das meninas, iniciou uma "caça às bruxas", que levantou uma onda de histeria na população da cidade.

Os suspeitos eram geralmente pobres, tímidos e socialmente reservados; vulneráveis, portanto, às técnicas agressivas de interrogatório a que foram submetidos. E as "confissões" não se fizeram esperar, porque os arguidos, confrontados com polícias que se recusavam a aceitar explicações que não lhes agradassem, depressa compreenderam que só se acusando a si próprios e a outras pessoas podiam ter algum descanso. As confissões eram por vezes estranhas: rituais macabros na igreja pentecostal, em que as crianças eram violadas sobre o altar por homens vestidos de preto e com óculos escuros, enquanto se ouviam gritos entusiásticos de "Aleluia!"; orgias sexuais participadas por toda a congregação...

As técnicas que a Polícia usou podem deduzir-se das seguintes declarações de Sarah Marie Doggett, de 16 anos:

Ele [o polícia] sabia que o meu pai me tinha violado e porque é que eu não o admitia [...] Não, o meu pai nunca me violou, e eu disse que era virgem. Que me levasse ao médico, que me fizessem um exame físico. Isso seria prova. E ele disse, 'não precisamos fazer isso. Já sabemos a verdade' [...] Disseram que eu estava a ameaçar suicidar-me; e assim trouxeram uma maca, e imobilizaram-me, e ataram-me à maca, e puseram-me numa ambulância e levaram-me para Pine Crest, um hospital psiquiátrico em Idaho [22].

Sarah, a suposta vítima, ficou internada cinco semanas sob detenção. A intenção dos Serviços de Proteção das Crianças era certamente levá-la a "confessar", através de uma terapia adequada. Mas a porta-voz do Departamento de Serviços Sociais e de Saúde do Estado de Washington comentou, a propósito deste episódio: "Não me surpreenderia que algumas destas crianças precisassem de tratamento psiquiátrico, considerando a gravidade do abuso a que foram sujeitas". É evidente que uma pobre desculpa sempre era melhor do que admitir a verdade.

Os pais de Sarah, Mark e Carol Doggett, tinham sido acusados de molestar sexualmente os cinco filhos, o mais novo com apenas 8 anos. Os Serviços de Proteção das Crianças puseram de lado todas as considerações deontológicas para "persuadirem" as crianças a acusar os pais, com resultados evidentes: os Doggetts foram condenados a 10 anos e 10 meses de prisão cada um. Só mais de três anos depois se conseguiu a anulação das sentenças.

A imprensa, citando fontes da polícia, começou a falar numa "rede de pedofilia" a que chamavam "O Círculo", com umas duas dúzias de membros, que teriam abusado de cerca de 50 crianças. À medida que a "caça às bruxas" progredia, "O Círculo" passou a ter mais de uma centena de membros, que seriam alegadamente responsáveis por milhares de abusos.

De 1992 a 1995 foram presos 43 adultos, que foram acusados de 29.726 casos de abuso sexual de dúzias de crianças. 18 deles, levados a tribunal onde, por serem pobres, foram defendidos por advogados oficiosos, foram condenados. Outros tiveram mais sorte.

O pastor pentecostal Robert Roberson, de 50 anos, foi preso em abril de 1995, cinco dias depois de ter condenado a caça às bruxas num sermão, e acusado de quatro instâncias de violação e seis de abuso sexual de cinco crianças de 4 a 15 anos; a sua mulher Connie, de 45 anos, foi igualmente detida e acusada de duas instâncias de violação e cinco de abuso sexual de quatro crianças. Conseguiram um advogado de qualidade, Robert Van Siclen, que lhes alcançou a absolvição em 11 de Dezembro; mas não os pôde livrar de 135 dias de prisão e de enormes sofrimentos morais. Quanto às crianças supostamente abusadas, várias dezenas foram retiradas do seio das suas famílias; muitas foram enviadas para lares, e outras foram destinadas a adoção.

Houve quem denunciasse a caça ao pedófilo. Juana Vasquez, supervisora da assistência às crianças, exprimiu o seu cpticismo a respeito da investigação do detetive Perez; foi suspensa do seu cargo e mais tarde despedida [23]. O assistente social Paul Glassen discordou dos métodos do Serviço de Proteção das Crianças; foi acusado de interferir com as testemunhas e de obstrução da justiça, foi investigado pela polícia como suspeito de abuso sexual de menores, e viu-se obrigado a exilar-se no Canadá, com a sua família, para escapar à prisão preventiva.

Coisa semelhante aconteceu ao Delegado do Condado de Chelan, Earl Marcellus, quando revelou que uma das meninas ao cuidado de Perez lhe tinha confessado que as acusações que ela fizera eram inventadas. Um grupo de cidadãos tentou organizar-se para defender os inocentes, sob a orientação de Mario e Connie Fry; as suas casas foram vigiadas pela polícia, que tomou abertamente nota das matrículas dos seus carros; receberam cartas anônimas, ameaçando-os; desconhecidos lhes apedrejaram as janelas e atiraram ovos contra as paredes das casas; e, num caso isolado, um vidro de automóvel foi estilhaçado por um disparo de caçadeira.

Em 1995 a advogada oficiosa de defesa Kathryn Lyon, que se dedicou a estudar a fundo o caso, publicou The Wenatchee Report, em que denunciou inúmeros casos de abusos... mas do detective Robert Perez, que usou métodos ilegais de interrogatório e passou por cima de várias disposições processuais, e do Serviço de Proteção das Crianças local, que, segundo comentou mais tarde o funcionário do Departamento do Tesouro (e depois jornalista) Paul Craig Roberts, foi encorajado a encontrar o maior número possível de suspeitos de pedofilia pela necessidade que tinha de receber os subsídios federais que a Lei Mondale, de 1974, atribuía a campanhas semelhantes.

Para os funcionários do Serviço, a legislação vigente dava-lhes plenos poderes para "proteger as crianças", mesmo que fosse à custa dos direitos dos acusados e até das próprias crianças, que estavam supostamente a proteger. Num seu livro posterior, Kathryn Lyon descreve o que encontrou em documentos oficiais:

As crianças que não colaboravam com o Serviço eram ameaçadas com prisão; eram retiradas da escola, dos seus bairros e afastadas das igrejas e dos seus familiares; eram abusivamente medicadas com calmantes; eram forçadas a sofrer terapia de "memória recuperada"; eram internadas por períodos longos em instituições psiquiátricas, onde eram tratadas dia e noite por profissionais que acreditavam incondicionalmente que elas eram vítimas [24].

Não admira que as “confissões” tivessem proliferado.

A primeira reação ao Wenatchee Report veio das autoridades. Kathryn Lyon foi ameaçada de prisão, em 1996, se não revelasse as fontes de informação que usara - e isto apesar de, em junho do mesmo ano, a menina cuja queixa iniciara todo o processo ter negado que alguma vez tivesse sido abusada ou tivesse visto alguém ser abusado, e ter atribuído as suas "confissões" anteriores a pressões que Robert Perez exercera sobre ela. Por fim, triunfou a razão. Seguiram-se revisões dos processos, que se iniciaram em 1998 e terminaram, na maioria dos casos, pela absolvição dos condenados, e num ou noutro caso pela substituição da acusação de abuso sexual de menores por outra menos grave, como maus tratos físicos.

Finalmente, um júri do Condado de Spokane declarou, em 2001, que a cidade de Wenatchee e o Condado de Douglas, a que pertence, eram culpados de negligência em permitirem que uma investigação policial ficasse fora de controlo. E atribuiu 3 milhões de dólares de indenização a um casal que fora condenado injustamente. O casal Everett, que esteve na base da caça às bruxas e tinha ficado sem as cinco filhas, acabou por ser autorizado a receber quatro delas de volta; a quinta tinha sido adotada por uma família no Estado de Wisconsin e já tinha 19 anos, sendo, portanto, livre de decidir se queria ou não voltar para os pais.

Uma arguida, Doris Green, condenada a 23 anos por causa de uma "confissão" que a obrigaram a assinar e libertada em 17 de novembro de 1999, depois de quatro anos e meio de cadeia, processou, em março de 2001 a cidade de Wenatchee, Robert Perez (já aposentado da polícia), a sua mulher Luci Perez, o chefe da polícia do condado, Ken Badgley, e a equipe de acusadores do processo. Acusado de instabilidade mental, Perez alegou não poder comparecer às audiências por sofrer de stress pós-traumático e os interrogatórios fazerem-lhe reviver situações traumatizantes. Apesar de toda esta obstrução, Doris Green recebeu 177.500 dólares, em agosto de 2003, a que se acrescentou outra indenização de valor não divulgado.

A caça ao pedófilo tinha sofrido reveses, mas os seus executores podiam estar satisfeitos. Tinham cumprido grande parte da sua missão - e nem um chegou a ser processado, apesar de terem violado a lei inúmeras vezes. Se não se via um pedófilo, pensavam, era porque tinha fugido. Restavam apenas dezenas de famílias destroçadas, e dúzias de crianças abusadas pelas pessoas que supostamente as deviam defender, e que as traumatizaram brutalmente "para seu bem". Isto tem sido gradualmente reconhecido pelas próprias "vítimas": até novembro de 2003, pelo menos 14 crianças que foram coagidas a acusar inocentes processaram a cidade de Wenatchee.

[22] Transcrição de uma entrevista transmitida pela CNN no noticiário da manhã de 20.10.1995.

[23] Processou as autoridades e recebeu 1.570.000 dólares de indemnização em 1998, alguns meses antes do seu falecimento em 29.4.1999, com 48 anos.

[24] LYON, Kathryn - Witch hunt: A true story of social hysteria and abused justice. New York,NY, Avon Books, 1998.

Fonte:


 

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