Casos de Falsas Acusações de Abuso Sexual, parte IV "Bakersfield"
Bakersfield
Um caso tristemente famoso passou-se em Bakersfield, no Condado de Kern, Califórnia, onde começou em 24 de setembro de 1984 o julgamento de John Stoll, carpinteiro de profissão, e três outras pessoas, acusadas de formarem uma "rede de pedofilia". Uma queixa sem fundamento da sua ex-mulher, relativa a um filho do casal, de 5 anos, foi transformada pela polícia num caso monstruoso de "rede de pedofilia", com vários arguidos, acusados de fazerem sexo oral e anal com inúmeras vítimas, a mais velha das quais tinha 9 anos.
A acusação, em que colaboraram assistentes sociais com grandes ambições profissionais e técnicos de proteção de menores que utilizaram métodos questionáveis (chegaram a ameaçar as crianças [15]), era um disparate sem fundamento. As provas apresentadas em tribunal pela acusação eram, nas palavras de um observador, "quase invariavelmente defeituosas, falaciosas ou irrelevantes". Os depoimentos dos menores eram "extremamente dúbios", não concordavam nem na ocasião e local dos supostos abusos, nem nos abusadores e vítimas, apesar de terem sido claramente "ensaiados", e não foram corroborados por quaisquer provas médicas ou psicológicas. Houve testemunhas de defesa que foram intimidadas. O tribunal sabia de tudo isto, além de se ter provado que a queixosa inicial tinha uma história de instabilidade psíquica e tinha mesmo sido internada por algum tempo; mas o Ministério Público era representado pelo enérgico Edward R. Jagels, que se gabava de ter conseguido para o Condado de Kern a maior percentagem de condenações per capita de todo o Estado da Califórnia [16].
Os jurados disseram [aos advogados de defesa] que não acreditavam que o que os miúdos disseram era mesmo a verdade, mas pensaram que alguma coisa imprópria devia ter acontecido. Afinal, as crianças não mentem.
Como acontece com muitas declarações de fé, esta máxima mostrou estar completamente errada. Ninguém sabe como é que veio a ser tão completamente aceite [17].
Os quatro arguidos foram condenados a penas pesadas por supostos abusos a seis crianças; John Stoll foi condenado a 40 anos. Dois arguidos recorreram e acabaram por ser libertados até novo julgamento, que não teve lugar. Os outros dois, John Stoll e Grant Self, continuaram presos, apesar de se saber que tudo indicava que eram inocentes. De resto, se dois membros da suposta "rede de pedofilia" tinham sido ilibados, então a própria existência da "rede" tinha sido posta em cheque, o que devia bastar para uma revisão dos processos dos outros dois - se não se tratasse de um caso deste gênero.
Em 21 de fevereiro de 2004, John Stoll, com 60 anos, doente e arruinado por vinte anos de prisão, invocou um habeas corpus para poder ser libertado, alegando, entre outras coisas, que fora condenado apenas por provas testemunhais, e que cinco dos seis menores, hoje adultos, já tinham admitido em tribunal, no mês anterior, que nunca foram abusados [18] (o sexto, o seu filho, insiste que foi molestado, mas Stoll atribuiu essa obstinação à influência da mãe, que, como ficou demonstrado em tribunal, lhe manipulou o depoimento).
Era a sua derradeira oportunidade: esgotara todos os recursos possíveis, e se fosse libertado condicionalmente em 2005, como estava previsto, sem ser inocentado, seria internado no hospital estadual para criminosos sexuais por tempo indefinido.
Apesar de o Ministério Público ter insinuado que os depoentes tinham feito um conluio secreto com John Stoll para que este fosse libertado, o juiz reconheceu que as testemunhas de acusação não eram fiáveis, anulou a sentença, em 30 de Abril, e ordenou que Stoll fosse posto em liberdade, o que se efetuou em 4 de maio, data do seu 61º aniversário. Ninguém, a não ser os advogados dele, festejou a libertação: o filho dele não o quis ver, a sua ex-mulher muito menos, e a mãe dele, que sempre acreditou na sua inocência e lhe pagou as despesas legais, falecera quando ele ainda ele estava preso.
Grant Self não teve essa sorte. Terminada a sua sentença, foi declarado "predador sexual violento" e internado compulsivamente no hospital psiquiátrico estadual de Atascadero, onde ainda se mantém.
Entretanto, foi criado em Bakersfield um Conselho de Prevenção de Abusos de Crianças (Kern Child Abuse Prevention Council), que certamente atuará de maneira semelhante se for proporcionada uma nova fase de histeria coletiva. Ou, quem sabe, talvez tenha mais cuidado: os 46 inocentes que passaram anos na cadeia por crimes que não só não cometeram como nem sequer tinham ocorrido processaram as autoridades locais, que têm sido obrigadas em tribunal a pagar mais de 5 milhões de dólares de indenizações.
Em outubro de 1984, poucas semanas depois do julgamento de John Stoll, Bakersfield veio a ser palco de mais um caso de alegado abuso sexual, que foi ampliado pela polícia para se transformar numa "rede de pedofilia" com aspectos de satanismo, cenário para que contribuiu muito a assistente social Velda Murillo, que representava os Serviços de Protecção de Crianças da região e também estivera envolvida no processo de John Stoll.
Foram interrogados 80 suspeitos de terem abusado de 22 crianças e assassinado ritualmente mais uma dúzia. O xerife do Condado de Kern, Larry Kleier, investigou o caso com tal energia que houve quem comentasse: "Pobre comunidade! Metade da população está com medo do Diabo, e a outra metade com medo do xerife!" Por fim, as investigações foram suspensas e o processo arquivado, mas, para não se ter perdido o tempo, o mecânico Jeffrey Modahl acabou por ser arguido de abusar sexualmente de duas filhas adotivas e condenado, em 1986, a 48 anos de cadeia, com base em "provas" contaminadas e sem valor. A pedido do Procurador Geral do Estado, o processo foi re-examinado meses depois e completamente descredibilizado, o que as autoridades judiciais do Condado de Kern se recusaram a aceitar até serem obrigadas a isso; mas Modahl só foi libertado em maio de 1999. O Procurador do MP e entusiástico caçador de pedófilos, Ed Jagels, que destruiu a vida de Modahl e de mais 28 arguidos e de dezenas de familiares inocentes, foi desacreditado, mas não sofreu a menor sanção [19].
Pelo menos, Jeff Modahl conseguiu sobreviver. Nem todos tiveram essa sorte. Em 1989, Kaare e Judy Sortland foram acusados de terem abusado sexualmente de 14 crianças na creche Hugs & Kisses (Abraços e Beijos), que dirigiam na cidade de Tacoma, Estado de Washington. Como já é costume, as crianças negaram que tivesse havido qualquer abuso, até serem interrogados vezes sem conta e "trabalhados" por psicólogos e terapeutas.
O pai de um dos meninos chegou a afirmar: "Havemos de falar com aqueles miúdos até eles chegarem aos 20 anos de idade, se for necessário, para conseguirmos uma história em que um júri acredite" [20]. Com tudo isto, os Sortlands só foram julgados pelo alegado abuso de três rapazinhos; nos dois julgamentos a que foram submetidos, em maio e novembro de 1990, o júri concluiu que eram inocentes, e que as crianças tinham sido levadas a mentir pelo modo como foram tratadas por dois psicólogos, que fizeram por justificar os 28.500 dólares que cada um receberia do Estado.
Como é costume nestes casos, a inocência dos Sortlands não foi aceita pela "opinião pública"; os desgraçados começaram a ser insultados na rua e perseguidos pelos "defensores das crianças", que fizeram da sua existência um inferno. Até que, em 31 de Outubro de 1992, desconhecidos assassinaram Kaare Sortland, junto à porta de casa, com seis tiros no peito.
As últimas palavras da vítima, dirigidas aos agressores, foram: "Eu não fiz nada!" Cinco anos mais tarde, a polícia ainda não tinha identificado os "justiceiros". De fato, nem sequer quiseram admitir que o crime estava ligado à absolvição, embora, horas antes, alguém, talvez os mesmos desconhecidos, tivesse pintado obscenidades nos fundos da casa dos Sortlands.
[15] Uma alegada vítima dos casos de "pedofilia" de Bakersfield, Carol Ann Bittner, declarou anos mais tarde, já adulta, que a assistente social Velda Murillo lhe chamou nomes e ameaçou agredi-la à bofetada se ela não confessasse ter sido abusada (c.f.)
www.rickross.com/reference/false_memories/fsm71.html ).
[18] O Ministério Público opôs-se a um novo julgamento para John Stoll, acusando os depoentes de terem feito um conluio secreto com Stoll para que este fosse libertado! Esta afirmação gratuita e disparatada foi aceite em princípio por um sistema judicial que tem grande relutância em admitir que se enganou.
[19] HUMES, Edward - Mean justice: A town's terror, a prosecutor's power, a betrayal of innocence. New York,NY, Simon & Schuster, 1999.
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