Casos de Falsas Acusações de Abuso Sexual, parte III "Little Rascals"
Little
Rascals
A vila de
Edenton, no Estado da Carolina do Norte, foi fundada em fins do Século XVII e é
ainda hoje uma localidade pacata, com cerca de 6.000 habitantes, onde quase
toda a gente se conhece. Foi ali que, em 1988, Bob e Elizabeth (Betsy) Kelly
compraram uma antiga fábrica, renovaram-na e instalaram lá uma creche, a que
chamaram Little Rascals (Pequenos Marotos). Graças aos seus esforços, a creche
tornou-se em pouco tempo a mais prestigiosa da vila, para onde as famílias mais
conceituadas mandavam os seus filhos. Mas naquele Inverno, uma mãe neurótica,
Audrey Stever, contou a Brenda Toppin, investigadora da polícia local, que o
filho dela, de três anos, se masturbava e lhe tinha dito que tinha
"brincado de médicos" com um rapaz mais velho da vizinhança.
Bem,
Brenda Toppin tinha acabado de frequentar um seminário sobre abuso sexual de
menores e, inspirada pelo que aprendera, instruiu a mãe sobre como havia de
interrogar o filho. Este não tardou a dizer que "o Sr. Bob" tinha
"brincado de médico" com ele e com outros meninos. Toppin abriu
imediatamente uma investigação e, em Janeiro de 1989, Bob Kelly foi informado
de que tinha havido alegações de abuso sexual contra ele.
A sua
reação foi de conversar pessoalmente com todos os pais das crianças que
frequentavam a creche, a quem contou o que se passava - e a primeira reação dos
pais foi de espanto e de solidariedade para com ele.
Mas esta
atitude não servia à polícia e tinha que mudar. E assim foi. À medida que a
investigação continuava, alguns pais começaram a duvidar dos Kellys e acabaram
por se convencer de que os filhos tinham realmente sido abusados. Estes, por
conselho da polícia e do Ministério Público, começaram a ser
"trabalhados" por psicólogos e terapeutas.
Alarmado,
Bob Kelly contratou um advogado de grande prestígio na comunidade, Chris Bean,
de quem era amigo e cujo filho frequentava a creche. A primeira reação dos
vizinhos foi deixarem de falar com o advogado e a esposa dele. Até que, em fins
de abril de 1989, pouco antes da primeira sessão de instrução do processo, o
Procurador do Ministério Público, H. P. Williams, confidenciou a Bean que
alguns meninos tinham dito que o seu filho estava entre as crianças abusadas. O
pequeno negou tudo, mas Bean desistiu da defesa e passou para o lado da
acusação, o que causou grande impacto entre as famílias da vila: se o advogado
procedeu assim, diziam, é porque havia certamente algo de errado na creche.
Bob Kelly
foi preso nesta altura, e a creche foi encerrada no dia 28 de abril. Em Maio, o
número de crianças sujeitas à terapia cresceu assustadoramente: cada uma
nomeava outras, que por sua vez nomeavam outras, e assim por diante. 90
crianças, praticamente todas as que frequentavam a creche, foram submetidas à
terapia, e foi perante os terapeutas que fizeram as primeiras alegações de
abuso - o que sempre tinham negado quando os pais e a polícia os interrogaram.
Começaram
as detenções: Betsy Kelly em setembro, seguida de mais cinco pessoas que
trabalhavam na creche. Os detidos foram acusados no verão de 1990 de 429
instâncias de abuso sexual de 29 crianças, que incluíam sodomia, violação,
urinar e defecar em frente das crianças, fazer sexo em frente das crianças e
obrigá-las a imitá-los, e assim por diante. Os abusos teriam sido fotografados
por Darlene Harris, ex-mulher de um polícial, que nem sequer estava ligada à
creche, mas que foi "identificada" por uma fotografia mostrada às
crianças.
Por esta
altura, havia um ambiente de terror em Edenton. Qualquer pessoa que tivesse
trabalhado na creche era suspeita; houve pais que exigiram à polícia que fossem
todas presas. As crianças tinham nomeado vinte pessoas, e só sete foram
detidas; não seria isto indicação de uma tentativa de encobrimento por parte
das autoridades?
Betty Ann
Phillips, cujo filho, segundo a terapeuta que o atendera, teria sido abusado,
começou a ter sérias dúvidas sobre a veracidade do que a criança estava a ser
obrigada a dizer; e quando os Kellys foram formalmente acusados e ela soube que
não tinha sido consultada, embora uma das acusações se referisse ao seu filho,
foi protestar junto do Procurador Williams, que a avisou, com toda calma, que
se calasse, porque muitas das crianças teriam confessado que Betty Ann
costumava ficar "de sentinela" enquanto os Kellys abusavam do filho
dela.
O
Tribunal decidiu julgar os arguidos separadamente, começando por Bob Kelly. E
ficou mais que evidente que não havia provas contra eles. Ninguém tinha visto
qualquer abuso; nenhuma das crianças se tinha queixado de algum abuso antes de
serem apertadas por polícias e terapeutas; não havia provas materiais de abuso.
Nem sequer havia gravações ou notas manuscritas dos interrogatórios; Brenda
Toppin confessou que tinha destruído ou perdido tudo.
Os
terapeutas não tinham mais do que apontamentos sumários das entrevistas com as
crianças, escritos mais tarde.
Os pais
das alegadas vítimas declararam que estas tinham comportamentos que indicavam
terem sido abusadas: enurese, pesadelos, medo de ir sozinhas ao banheiro e
assim por diante. Mas estes supostos indicadores de abuso só apareceram depois
dos interrogatórios e não enquanto as crianças frequentavam a creche.
E as
crianças? Apesar de terem sido cuidadosamente ensaiadas pelo Ministério
Público, que chegou a organizar um "teatrinho" para as habituar ao
ambiente do Tribunal, e de terem sido mandadas jurar sobre a Bíblia dizer
"a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade", apesar da sua
tenra idade, contaram um sem-número de disparates: que os Kellys as tinham
levado de balão ao espaço exterior, onde matavam bebês, que os levavam a
passear de barco para os atirarem pela borda fora, com tubarões amestrados na
água, que tinham um aquário gigante cheio de tubarões, que penduraram um bebê
de uma árvore pelos pés, antes de lhe deitarem fogo, e que matavam leões e os
transformavam em tapetes.
Mas isto
não chegou para convencer o júri de que o processo era um absurdo total; depois
de terem deliberado durante três meses, fazendo do processo o mais caro da
história da Carolina do Norte, consideraram Bob Kelly culpado de 99 das 100
instâncias de abuso sexual. O pobre homem, apesar de inocente, foi condenado,
12 vezes consecutivas, a prisão perpétua.
Entretanto,
vários membros do júri, entrevistados para um programa de televisão, admitiram
pressões exteriores e diversas irregularidades. Com base nestas declarações, os
advogados de Bob Kelly pediram em novembro de 1993 a anulação do julgamento, o
que lhes foi recusado.
Os outros
julgamentos foram semelhantes, mas um merece ser comentado, para demonstrar
como até o Ministério Público estava consciente da fragilidade do caso:
ofereceu a Kathryn Dawn Wilson uma sentença de um ano ou dois de prisão se
confessasse várias das acusações; tendo rejeitado a oferta, assim como outra de
ser apenas condenada a meses de prisão, por ser inocente, foi condenada a
prisão perpétua.
Depois de
dois anos de cadeia, Betsy Kelly estava prestes a ceder, e ainda por cima tinha
uma filha pequena para sustentar. Aceitou não contestar a acusação (embora não
se considerasse culpada), e foi libertada um ano e pouco depois. Tornou então a
ver a filha, que já tinha 10 anos; mas, seis meses depois, a sentença de Bob
Kelly foi anulada por irregularidades processuais e ele voltou para casa - para
tratar do divórcio, que foi consumado em outubro de 1995.
Por esta
altura, três dos detidos foram libertados por anulação das acusações, um quarto
aceitou não contestar a acusação e foi libertado, e a sentença de Kathryn Dawn
Wilson foi anulada. Mas não foi o fim do pesadelo para Bob Kelly: embora a sua
sentença tivesse sido definitivamente anulada em maio de 1997, o Ministério
Público anunciou que iria processá-lo por alegações de abuso que datavam de
1987 e não estavam relacionadas com as anteriores. Depois de uma intensa e
dispendiosíssima batalha legal, Kelly foi deixado em paz em setembro de 1999 -
dez anos e oito meses depois da primeira acusação.
E nunca
recebeu as desculpas do sistema judicial.
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