Caos de Falsas Acusações de Abuso Sexual, Parte I " Caso McMartin"
McMartin
O
primeiro grande escândalo de pedofilia nos Estados Unidos começou em Agosto de
1983, na cidade californiana de Manhattan Beach, quando uma mãe alcoólica e
psicótica de Los Angeles, Judy Johnson, reparou que o seu filho, de dois anos e
meio, voltara da creche McMartin com o traseiro avermelhado. Perguntou ao
menino o que tinha acontecido, e ele aparentemente falou dum funcionário da
creche, chamado Ray, mas sem conseguir explicar o que ele teria feito. Foi o
suficiente para a mãe chamar a Polícia, que embarcou alegremente numa ofensiva
antipedofílica até então sem precedentes.
Judy
Johnson não ficou por ali; começou a ampliar as alegações, até acusar Raymond
Buckey (o tal Ray), familiar dos proprietários da creche, de ter obrigado o seu
menino a andar nu a cavalo, de ter abusado dele enquanto estava vestido de
polícia, ou de bombeiro, ou de palhaço, ou de Pai Natal, e até de ter posto
agrafes nas orelhas e na língua do menino e lhe ter espetado os olhos com uma
tesoura, embora não houvesse indícios materiais de coisa nenhuma. Não ficou por
aqui; disse que Ray tinha sodomizado o seu menino enquanto lhe metia a cabeça
numa retrete, e acusou três modelos dum clube de ginástica e um fuzileiro de
terem violado a criança. Como se isso não chegasse, acusou a mãe do infeliz
Ray, Peggy McMartin Buckey, de ter assassinado um bebé para o filho lhe beber o
sangue. Mais tarde, já depois de lhe ter sido diagnosticada uma psicose, Judy
Johnson, cuja fixação anal era cada vez mais evidente, acrescentou que o seu
cão tinha sido sodomizado por um desconhecido que lhe entrara em casa, e que o
seu próprio marido tinha abusado sexualmente do menino, que teria também sido
sodomizado por um leão!
Numa
situação normal, a Polícia teria pensado duas vezes antes de dar crédito a uma
história tão inverossímil; mas uma alegação de pedofilia tem o condão de
paralisar o raciocínio dos servidores da lei. Assim, a Polícia enviou cerca de
duzentas cartas às famílias das crianças matriculadas na creche,
perguntando-lhes se tinham notado alguns sinais de abuso - e pedindo-lhes
expressamente que encontrassem indícios que comprometessem Ray Buckey:
Por
favor, interrogue o seu filho, para ver se ele ou ela observou algum crime ou
se foi vítima. A nossa investigação indica que os atos possíveis incluem: sexo
oral, manipulação dos órgãos genitais, nádegas ou peito, e sodomia,
possivelmente cometida sob o pretexto de ver a temperatura da criança [com um
termômetro retal. Também é possível que tenham sido tiradas fotografias das
crianças nuas. Qualquer informação do seu filho, no sentido de alguma vez ter
observado Ray Buckey sair de uma sala, sozinho com uma criança, durante o período
da sesta, ou se viu Ray Buckey atar uma criança, é importante.
O
Ministério Público recomendou aos pais que enviassem os pequenos a uma clínica
especializada, o Children's Institute
International (CII), para serem submetidos a terapia. Os pais entraram em
pânico e entregaram os filhos ao CII, cujos funcionários submeteram as
indefesas crianças a vários interrogatórios, que incluíam o uso de bonecos
anatomicamente corretos, e encorajaram-nas a contar tudo; para eles, o facto de
se negar um abuso era indício seguro de que a criança tinha sido abusada. A sua
obstinação foi devidamente recompensada - e de várias maneiras: o CII
interrogou mais de 400 crianças, e por cada uma recebeu 455 dólares do Estado.
As
crianças não tardaram em contar histórias incríveis. Os educadores, por vezes
vestidos de bombeiros, abusavam delas de várias maneiras, incluindo à beira de
uma via rápida (onde passavam 17.000 veículos por dia) e a bordo de um balão;
mutilavam e sacrificavam animais à sua frente; usavam-nas em rituais satânicos
praticados em túneis escavados no subsolo da creche; matavam leões; tinham
relações sexuais com uma girafa e com um elefante; voavam pela janela;
apareciam diabos, bruxas, fantasmas e zombis azuis a assistir aos abusos; e as
crianças eram obrigadas a comer fezes com molho de chocolate e a beber sangue e
urina. Estes pormenores foram escamoteados pela Polícia na montagem do processo
[1],
mas ficou a sugestão de que a creche era a sede de uma "rede de
pornografia infantil", porque cada abuso teria sido fotografado. Segundo o
Ministério Público, haveria milhões de fotos das crianças, que tinham sido
difundidas por todo o mundo.
Em Março
de 1984, a Polícia deteve vários membros da família Buckey, incluindo a
fundadora da creche, Virginia McMartin Buckey, uma pobre mulher de 77 anos que,
apesar de estar numa cadeira de rodas, teria abusado de várias crianças [2].
Fizeram-se
buscas em 21 casas, sete estabelecimentos comerciais, 37 automóveis, três
igrejas, dois aeroportos, uma quinta, e até num parque nacional. Examinaram-se
fotos e filmes pornográficos, obtidos de várias fontes, para tentar identificar
a presença de alguma criança da creche. Pediu-se a colaboração do FBI e da Interpol.
A imprensa alimentou durante meses uma campanha de histeria coletiva que se
refletiu grandemente nos lucros das vendas dos jornais. Até pessoas
responsáveis esqueceram a sua dignidade profissional e o mais elementar bom
senso.
O Dr.
Roland C. Summit, que se considerava uma autoridade em casos de abuso sexual de
crianças, chegou a louvar a imprensa: "Sem esta cobertura por parte da
imprensa, ficaríamos encalhados nos nossos velhos mitos" [3]
- ou seja, custaria a crer em tanto disparate. E mais: centenas de crianças
teriam escapado aos abusos sexuais por causa da publicidade feita a propósito
do caso McMartin [4].
Talvez a sua atitude se devesse, pelo menos em parte, a ele ter recebido um
subsídio de 66.000 dólares para organizar um centro de apoio, onde os pais e
familiares iriam buscar respostas para todo o tipo de perguntas: onde posso
ir pedir ajuda... o miúdo do vizinho fez (ou disse)... ouvi dizer que a loja da
esquina... porque é que ainda não foram presos... como é que sei se o meu filho
foi molestado... [5]
Com este
gênero de "apoio", a acusação podia contar com uma atitude correta
dos pais das supostas "vítimas". E o Dr. Summit não foi parco em
declarações públicas, para que o ímpeto da caça ao pedófilo não esmorecesse: as
crianças não mentem (e era impensável pôr em causa este dogma); era preciso
expandir os recursos terapêuticos para ajudar as crianças; era preciso evitar
que houvesse dúvidas sobre a realidade dos abusos, porque assim as crianças,
vendo que não acreditavam nelas, ficariam caladas; era preciso que todos os
arguidos fossem condenados, caso contrário a sociedade deixaria de acreditar na
Justiça. Argumentos que, infelizmente, já são conhecidos no nosso País.
360 crianças
teriam sido abusadas, mas apenas onze apareceram em tribunal - as restantes
estavam tão desacreditadas que tinham perdido a sua utilidade - e duas destas
foram eliminadas da lista de testemunhas à última hora. As supostas
"vítimas" foram bem preparadas por psicólogos, e repetiram as
alegações em tribunal. Mas não havia quaisquer provas materiais que servissem à
acusação; os "milhões" de fotos pornográficas que a Polícia afirmava
terem sido tiradas nunca apareceram, nem os famosos túneis foram encontrados,
apesar de se terem feito escavações por todo o lado [6].
O julgamento de Raymond e Peggy começou em Abril de 1987, e as deliberações do
júri terminaram em Abril de 1989 num empate; o julgamento foi repetido no ano
seguinte, com o mesmo resultado. O Ministério Público desistiu então da queixa,
e o processo foi encerrado em 1990, depois de se terem gasto seis anos e quase
16 milhões de dólares para tentar provar crimes que nunca tinham acontecido. É
verdade que nenhum dos arguidos foi condenado; mas os anos que passaram na cadeia,
ninguém lhes recompensaram.
Os
arguidos, as únicas vítimas do processo, tentaram depois refazer as suas vidas.
Ray deixou a vida despreocupada que tinha levado, acabou o curso secundário e
matriculou-se num curso de Direito; a sua irmã Peggy Ann conseguiu que lhe
devolvessem a licença para ensinar e foi professora numa escola para crianças
especiais em Anaheim, Califórnia. O episódio de histeria da creche foi o tema
de um filme, Indictment: The McMartin trial ('Acusação: O julgamento de
McMartin'- "O silêncio dos Culpados" na versão portuguesa, com James
Wood) feito em 1995 e transmitido por vários canais de TV por cabo nos Estados
Unidos.
Os
verdadeiros crentes na existência de rituais satânicos, que se organizaram em
grupos por toda a América - o mais importante adotou o nome de Believe the Children ('Acreditem nas
Crianças') - foram confortados com as palavras do controverso Ted L. Gunderson,
ex-Agente Especial do FBI e fanático da conspiração, que desempenhou um papel
de certo relevo no caso McMartin:
Há fortes
indícios de que membros da rede satânica estão a dirigir creches de dia.
Crianças de diversos Estados, que nunca se encontraram, estão a contar às
autoridades histórias semelhantes a respeito das suas experiências na creche.
A
esquizofrenia de Judy Johnson piorou a olhos vistos; em certa altura chegou a
barricar-se em casa com medo de estranhos que, segundo disse, andavam a
segui-la. Em 1985 foi internada num manicômio, e no ano seguinte foi encontrada
morta, devido a complicações renais causadas pelo alcoolismo. Não chegou a assistir
às consequências das suas fantasias.
Muitas
das crianças, hoje adultos, continuam a insistir na veracidade dos disparates
que contaram com a ajuda dos terapeutas, assistentes sociais e polícias, que
devem rever-se no que conseguiram fazer.
A creche,
que já tinha sido danificada por fogo posto, foi demolida, mas o vírus de
McMartin não tardou a espalhar-se pelas terras mais remotas. A Dr.ª Astrid
Heppenstall Heger, vigorosa ativista da proteção de menores [7]
e colaboradora do Children's Institute
International (CII), deslocou-se a Christchurch
(Nova Zelândia) em Novembro de 1991 para dirigir um seminário sobre abusos
sexuais. 17 dias mais tarde, declarou-se na cidade um caso de histeria
coletiva: dezenas de crianças que frequentavam uma creche teriam sido abusadas,
num cenário copiado diretamente do caso McMartin e com pormenores inspirados no
referido caso. Um funcionário da creche, Peter Ellis, foi detido em Março de
1992 e condenado a dez anos de prisão por crimes que nunca aconteceram [8];
quatro funcionárias, que tinham sido detidas por protestarem contra a
investigação e foram depois acusadas de dançar nuas à roda das crianças da
creche, foram absolvidas e mandadas em paz, enquanto na sala do tribunal se
ouviam gritos de "Enforquem as putas!". Astrid Heger continuou a sua
brilhante carreira, recebendo inúmeros títulos, prêmios e homenagens de
organismos oficiais e privados, que fizeram dela talvez a defensora das
crianças mais galardoada do mundo.
[1] Mesmo assim, os psicólogos tinham uma resposta pronta para quem
duvidasse da veracidade das alegadas vítimas: tinham sofrido tanto com os
abusos sexuais que construíram uma série de fantasias como estratégia de
auto-defesa.
[2] Por razões de saúde, foi libertada ao fim de mais de dois anos de
prisão preventiva. Quase todos os arguidos foram libertados por falta de provas
após 18 meses na cadeia. Ray ficou preso mais de cinco anos.
[6] Alegações posteriores, que circularam entre os "crentes", da
existência de um túnel "documentada por uma equipa de arqueólogos
profissionais" eram uma fantasia completa, em que, é triste notar,
colaborou ativamente o próprio Dr. Summit (SUMMIT, Roland C. - "The dark tunnels of McMartin", in The
Journal of Psychohistory, Vol. 21 (1994), p. 397-416; cf. a refutação em
EARL, John - "The dark truth about
the 'dark tunnels of McMartin'", in Issues in Child Abuse
Accusations, Vol. 7 (1995), No. 2).
[7] Fundou em 1984 o Centro da Criança Vulnerável (CVC, Center for the
Vulnerable Child) na University of Southern California, onde se formou, e até
ao ano 2000 já tratara mais de 19.000 vítimas de abuso físico e sexual.
[8] Peter Ellis foi libertado em 2.2000, sete anos depois da condenação,
sem ter conseguido provar a sua inocência. A luta pela sua reabilitação
continua ainda hoje. No início de 4.2005, Ellis teve um ataque cardíaco grave,
causado pelas preocupações da sua vida, o que parece indicar que irá morrer
antes de ser reabilitado.
Fonte:
O Brasil teve o seu também, a Escola Base, a mídia teve um papel imprescindível na destruição da escola e das vidas dos proprietários! principalmente a Globo!
Muito obrigada pela informação. Não sabia desse caso. Vou dar uma pesquisada e postar aqui.